Toquei o piso, e de vez em quando o batia. Queria escutar o quão perto deveria estar de sair de lá, mesmo doendo perceber que poderia ser apenas um buraco pequeno; não sabia bem como reconhecer a profundidade pelo som… Peguei minha colher e passei em volta da lajota na qual batia. Tentava coloca-la de modo a poder levanta-la depois. Talvez cavando chegasse lá. Um buraco pequeno ou um túnel… Não havia o que perder agora, a não ser minha própria vida. Estremeci com o pensamento. Tirei um pouco da tinta e da argamassa ao redor da lajota, e continuei cavando. Seria dia ou noite agora? Não sabia ao certo. Fui até a janela, que jazia exatamente no mesmo lugar. A nesga de luz estava sumindo. O sol devia estar se pondo.
Voltei ao ponto oco do piso e continuei cavando. Perdi a noção do tempo, mas a fome e a sede me corroíam como ácido, passando pela minha garganta e chegando a meu estômago. Quando havia chegado a tirar boa parte do entorno da lajota, a pequena nesga de luz havia sumido completamente. Me deitei para descansar um pouco. Minha cabeça girava de fome, sede, medo e preocupação misturados em um caldeirão da brancura enlouquecedora da sala. Não queria ver mais aquele clarão estúpido. Fechei meus olhos, mas ainda via o branco, impresso no meu pensamento. Em algum momento depois disso, adormeci.
Acordei sobressaltada, com minha testa molhada e a boca tão seca que já não me saia a voz. Recordei quanto tempo fazia que não falava. Não precisava conversar comigo mesma, e imaginava que esse era o caminho mais curto para a iminente loucura que a sala proporcionava. Olhei minha tentativa de escape no chão, e parecia pequena e inútil perto da grande rachadura de onde saiam as formigas. Voltei à lajota e botei a colher logo abaixo dela. Tentei fazer uma alavanca, mas ela era muito pesada. Depois de, suponho, uma hora ali sentada, senti que o piso estava se soltando. Devagar, mas eu estava chegando mais perto. Renovei meu ânimo, e apesar da terrível dor de cabeça e irritação, fui capaz de cavar por cerca de duas horas. Me senti extremamente fraca depois disso. Minha cabeça ficou leve e senti que ia desmaiar. Me mantive por alguns minutos e continuei tentando segurar firme o pedaço de prato. A última coisa que vi antes de cair foi a colher quebrada coberta de formigas e muito, muito branco.
Mal conseguia me mover quando voltei a consciência. Lentamente, virei a cabeça para o lado do oco no chão. Foi então que vi algo impressionante. Não impossível, pois depois da janela, nada era impossível. O meu pedaço de prato era agora uma torta. Na torta, havia meia duzia de formigas e muito gracê. Era maravilhosa. “Agora estou delirando?” – pensei tentando levantar. Toquei-o e tive um choque de realidade. Meu dedo saiu molhado por uma pequena nuvem de glacê, a qual engoli sem nem checar se nela haviam formigas. Não importava, pois era bom demais. Abocanhei o resto dela, tirando uma que outra formiga e lambendo os dedos o tempo todo. Me sentia melhor, ao menos parecia ser real para mim. Na verdade, não precisava ser de verdade. Era bom; e estava ali pra mim. Voltei ao trabalho, agora com mais atenção. Botei a mão embaixo da laje, pois agora iria cavar com as mãos. Preço justo a pagar. Foi então que puxei a lajota. E olhei ela sair.
Parei por um tempo. Estava realizada. Com medo, sede (ainda mais que antes), dor… mas realizada. Tomei a laje nas mãos e depois dei uma olhada dentro do buraco. Era fundíssimo e minha alegria aumentava mais e mais. Dei um adeus silencioso a minha clausura. Parei com o olhar na janela trancada. Fui até ela e sorri, pensando que nunca mais veria algo tão estúpido, lindo e maldito. De dentro dela, vinha uma nesga de sol, de vida e um ar puro que aproveitei. Não olhei mais para trás, então. Peguei minha colher quebrada, o resto da minha vontade de viver e entrei num buraco escuríssimo e assustador. Provavalmente pra nunca mais voltar, seja lá o que houvesse do outro lado do caminho.
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